18/08/2011

A Voz que Nos Rasgou por Dentro



A Voz que Nos Rasgou por Dentro
De onde vem - a voz que 
nos rasgou por dentro, que
trouxe consigo a chuva negra
do outono, que fugiu por
entre névoas e campos
devorados pela erva?

Esteve aqui — aqui dentro
de nós, como se sempre aqui
tivesse estado; e não a
ouvimos, como se não nos
falasse desde sempre,
aqui, dentro de nós.

E agora que a queremos ouvir,
como se a tivéssemos re-
conhecido outrora, onde está? A voz
que dança de noite, no inverno,
sem luz nem eco, enquanto
segura pela mão o fio
obscuro do horizonte.

Diz: "Não chores o que te espera,
nem desças já pela margem
do rio derradeiro. Respira,
numa breve inspiração, o cheiro
da resina, nos bosques, e
o sopro húmido dos versos."

Como se a ouvíssemos.

Nuno Júdice, in "Meditação sobre Ruínas"

09/08/2011

E quem não gosta de um bom livro?


Livros

Caetano Veloso

Composição: Caetano Veloso
Tropeçavas nos astros desastrada
Quase não tínhamos livros em casa
E a cidade não tinha livraria
Mas os livros que em nossa vida entraram
São como a radiação de um corpo negro
Apontando pra a expansão do Universo
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
(E, sem dúvida, sobretudo o verso)
É o que pode lançar mundos no mundo.

Tropeçavas nos astros desastrada
Sem saber que a ventura e a desventura
Dessa estrada que vai do nada ao nada
São livros e o luar contra a cultura.

Os livros são objetos transcendentes
Mas podemos amá-los do amor táctil
Que votamos aos maços de cigarro
Domá-los, cultivá-los em aquários,
Em estantes, gaiolas, em fogueiras
Ou lançá-los pra fora das janelas
(Talvez isso nos livre de lançarmo-nos)
Ou ­ o que é muito pior ­ por odiarmo-los
Podemos simplesmente escrever um:

Encher de vãs palavras muitas páginas
E de mais confusão as prateleiras.
Tropeçavas nos astros desastrada
Mas pra mim foste a estrela entre as estrelas

05/08/2011

Bom senso precisa-se!

"Chinesa reza por seus antepassados durante cerimônia do Dia dos Ancestrais no mosteiro Kong Meng San Phor Kark See, em Singapura. Milhares de chineses visitam cemitérios, limpam túmulos e oferecem chá em memória aos seus entes queridos"
Fico sempre espantada com muitas das informações que recebo por e-mail. Mails generalistas que afirmam coisas que ninguém para para questionar.
Às vezes ainda procuro uma resposta oficial e reencaminho-a para  os que habitualmente costuma divulgar este tipo de informação.
Quem é que no seu juízo perfeito acredita que se marcarmos o código do cartão multibanco ao contrário, a PSP sabe que é sinal de que estamos a ser assaltados? e quem tem uma capicua? isto para não falar em pensamentos mais elaborados. A PSP não tem dinheiro para as fardas, para contratar mais agentes, quanto mais ter UMA CENTRAL SOFISTICADA QUE LHE PERMITISSE SABER O QUE SE PASSA EM CADA MULTIBANCO...
A lista de mails sem sentido é vasta: crianças desaparecidas (com fotos que parecem tiradas do álbum de algum pedófilo) , ninhadas de labradores para abate, pedidos de sangue para alguém que pelos vistos morre se não houver um dador (é preciso não ter o mínimo conhecimento de como funciona o instituto de sangue para acreditar nisso), etc. etc.
De todos, o que me impressiona mais é o de que não há funerais de chineses em Portugal porque estes comem os seus mortos.
Como é possível alguém acreditar nisto? Até há bem pouco tempo achava que esta afirmação só circulava por e-mail. Porém, qual não é o meu espanto quando, logo pela manhã, no café aqui ao lado, se falava neste assunto como se fosse uma verdade óbvia.
Pergunto:
-mesmo que todos os chineses que vivem em Portugal fossem canibais, acham que iam comer a família?
imaginam a cena:  "morreu o avô, leva-o para  a bancada, vamos fazer um chop suey de avô..."
POR FAVOR, PAREM PARA PENSAR...
O povo chinês  que sabemos que é capaz de cometer as maiores atrocidades - os outros também, mas não falemos disso agora )  tem um respeito enorme pelos seus mortos. Os cemitérios têm vistas espectaculares, são sagrados.
O principal motivo porque não há funerais de chineses em Portugal é porque os idosos vão morrer no seu pais, a família leva-os para que possam ficar junto aos antepassados. Na sua crença, ser enterrado longe de casa pode levar ao espírito dos seus familiares a deambular e não encontrar a paz, não encontrar o caminho para casa...
Por favor, coerência precisa-se!

01/08/2011

O elefante acorrentado



Não escrevi, mas estou tentada a tentar, passo a redundância...
Jorge Bucay

Deixa-me que te conte. Os contos que me ensinaram a viver
Lisboa, Pergaminho, 2004

O elefante acorrentado

— Não consigo — disse-lhe. — Não consigo!
— Tens a certeza? — perguntou-me ele.
— Tenho! O que eu mais gostava era de conseguir sentar-me à frente dela dizer-lhe o que sinto… Mas sei que não sou capaz.
O gordo sentou-se de pernas cruzadas à Buda, naqueles horríveis cadeirões azuis do seu consultório. Sorriu, fitou-me olhos nos olhos e, baixando a voz como fazia sempre que queria que o escutassem com atenção, disse-me:
— Deixa-me que te conte…
E sem esperar pela minha aprovação, o Jorge começou a contar.
Quando eu era pequeno, adorava o circo e aquilo de que mais gostava eram os animais. Cativava-me especialmente o elefante que, como vim a saber mais tarde, era também o animal preferido dos outros miúdos. Durante o espectáculo, a enorme criatura dava mostras de ter um peso, tamanho e força descomunais… Mas, depois da sua actuação e pouco antes de voltar para os bastidores, o elefante ficava sempre atado a uma pequena estaca cravada no solo, com uma corrente a agrilhoar-lhe uma das suas patas.
No entanto, a estaca não passava de um minúsculo pedaço de madeira enterrado uns centímetros no solo. E, embora a corrente fosse grossa e pesada, parecia-me óbvio que um ani mal capaz de arrancar uma árvore pela raiz, com toda a sua força, facilmente se conseguiria libertar da estaca e fugir.
O mistério continua a parecer-me evidente.
O que é que o prende, então?
Porque é que não foge?
Quando eu tinha cinco ou seis anos, ainda acreditava na sabedoria dos mais velhos. Um dia, decidi questionar um professor, um padre e um tio sobre o mistério do elefante. Um deles explicou-me que o elefante não fugia porque era amestrado.
Fiz, então, a pergunta óbvia:
— Se é amestrado, porque é que o acorrentam?
Não me lembro de ter recebido uma resposta coerente. Com o passar do tempo, esqueci o mistério do elefante da estaca e só o recordava quando me cruzava com outras pessoas que também já tinham feito essa pergunta.
Há uns anos, descobri que, felizmente para mim, alguém fora tão inteligente e sábio que encontrara a resposta:
O elefante do circo não foge porque esteve atado a uma estaca desde que era muito, muito pequeno.
Fechei os olhos e imaginei o indefeso elefante recém-nascido preso à estaca. Tenho a certeza de que naquela altura o elefantezinho puxou, esperneou e suou para se tentar libertar. E, apesar dos seus esforços, não conseguiu, porque aquela estaca era demasiado forte para ele.
Imaginei-o a adormecer, cansado, e a tentar novamente no dia seguinte, e no outro, e no outro… Até que, um dia, um dia terrível para a sua história, o animal aceitou a sua impotência e resignou-se com o seu destino.
Esse elefante enorme e poderoso, que vemos no circo, não foge porque, coitado, pensa que não é capaz de o fazer.
Tem gravada na memória a impotência que sentiu pouco depois de nascer.
E o pior é que nunca mais tornou a questionar seriamente essa recordação.
Jamais, jamais tentou pôr novamente à prova a sua força…
— E é assim a vida, Damião. Todos somos um pouco como o elefante do circo: seguimos pela vida fora atados a centenas de estacas que nos coarctam a liberdade.
Vivemos a pensar que «não somos capazes» de fazer montes de coisas, simplesmente porque uma vez, há muito tempo, quando éramos pequenos, tentámos e não conseguimos.
Fizemos, então, o mesmo que o elefante e gravámos na nossa memória esta mensagem: «Não consigo, não consigo e nunca hei-de conseguir.»
Crescemos com esta mensagem que impusemos a nós mesmos e, por isso, nunca mais tentámos libertar-nos da estaca.
Quando, por vezes, sentimos as grilhetas e as abanamos, olhamos de relance para a estaca e pensamos:
Não consigo e nunca hei-de conseguir.
 O Jorge fez uma longa pausa. Depois, aproximou-se, sentou-se no chão à minha frente e prosseguiu:
— É isto que se passa contigo, Damião. Vives condicionado pela lembrança de um Damião que já não existe, que não foi capaz.
»A única maneira de saberes se és capaz é tentando novamente, de corpo e alma… e com toda a forca do teu coração!